Relações tóxicas: como se afastar

Desconectar-se de pessoas que lhe fazem mal é a melhor saída para manter sua saúde mental

por Ana Ferreira | Ilustração de Chipolla Atualizado em 9 dez 2020, 21h59 - Publicado em 10 dez 2020 09h00

A pandemia nos fez manter distância de muitas pessoas queridas mas também de algumas que nos fazem mal, mesmo que não comuniquemos isso. Pense nas pessoas de seu convívio e reflita: alguma vez você já ficou sabendo que uma delas viveu ou ainda vive uma relação tóxica? E não falamos apenas de casais, não. Por mais que este seja um tema normalmente relacionado ao envolvimento romântico, é possível sofrer com o mesmo tipo de situação em vários outros ciclos, como de amigos, colegas de trabalho e até mesmo parentes. Veja aqui algumas dicas sobre como se afastar de relações tóxicas.

Você já sentiu um certo alivio, mesmo sem saber explicar, depois de se afastar de alguém? O motivo de não entendermos bem esse sentimento, segundo a terapeuta familiar Marina Vasconcellos, de São Paulo, é que a forma com que este tipo de relação atinge as pessoas pode, muitas vezes, ser sutil para quem está sofrendo esta experiência.

“Existem muitas pessoas tóxicas que são sedutoras, que chegam com um jeito galanteador ou demonstrando cuidado e preocupação, mas que, na verdade, estão tamponando um controle e manipulação”, ela explica. “Neste tipo de situação, é comum que exista uma sensação de tensão ou preocupação, onde você não consegue se sentir totalmente relaxada com a pessoa”, completa.

É muito comum percebemos isso em amigos que estão em relações românticas do tipo. Mas você já parou pra pensar que, às vezes, esse tipo de convívio está acontecendo em relações de amizade, familiares ou de trabalho suas?

Quando a relação tóxica é no trabalho

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(John M Lund Photography Inc/Getty Images)

P.P.*

Fui contratada para o segundo maior site de beleza do país e fiquei muito animada. Eu já tinha ouvido histórias de como essa chefe (conhecida no ramo) era problemática mas é diferente quando você tem a experiência em primeira mão.

Ela era extremamente controladora com a aparência dos funcionários. Uma vez, fui trabalhar sem maquiagem e ela disse que eu não poderia mais sair de casa sem estar arrumada pois agora eu representava a empresa. Ela também já tirou uma pacote de bolachas das mãos de uma funcionária que ela considerava gorda e era conhecida por fazer funcionárias voltarem para casa para se trocar porque não gostou da roupa delas.

“Ela já tirou uma pacote de bolachas das mãos de uma funcionária que ela considerava gorda porque ‘acho que você não precisa comer isso, né?'”

Eu comecei a ficar próxima da minha equipe e ela me disse que “pegava mal” eu almoçar com pessoas abaixo de mim. Um dia, eu fiquei doente e não fui pra empresa. As meninas da minha equipe foram para um bar e me marcaram na foto do brinde, no estilo “faltou você.” Essa chefe ficou o resto da semana tentando me manipular a “dizer a verdade” porque ela “sabia” que eu não estava doente de verdade aquele dia. Foi então que descobrimos que ela também controlava as redes pessoais dos funcionários.

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“A chefe tóxica tinha reputação de ligar para os lugares para onde os funcionários que se demitiram iam e inventar alguma coisa que impedisse a contratação”

Quando eu fui para outro lugar, minha nova chefe, que já havia trabalhado com a anterior, me disse pra não falar para onde eu ia, já que a chefe tóxica tinha reputação de ligar para os lugares para onde os funcionários que se demitiram iam e inventar alguma coisa que impedisse a contratação. Eu não disse (mesmo ela insistindo) e apenas perguntei se eu tinha que falar com o RH sobre o meu desligamento. Ela disse que não, que ela avisaria que eu já estava cumprindo meu aviso prévio. Quando encontrei a moça do RH, duas semanas depois, e comentei sobre minha saída, ela não sabia de nada. Para o sistema da empresa, eu não estava cumprindo aviso prévio e não teria os direitos relativos a ele ao sair. Por sorte, essa colega, sabendo que a chefe dava esses “truques”, pediu que eu escrevesse uma carta a punho informando minha demissão e colocando a data de quando eu realmente pedi, assim consegui garantir parte dos benefícios do aviso prévio. “Parte” porque não fiquei até o fim do mês para receber ele inteiro. Naquele mesmo dia, adiantei o que conseguia para não prejudicar a equipe, agradeci a oportunidade, peguei minha coisas e fui embora.

E. D.*

Trabalho há mais de 15 anos para a mesma pessoa e já sofri uma série de situações tóxicas com ele. Uma delas aconteceu quando o pai da minha filha faleceu, quando ela ainda era criança, com 11 anos.

Passados quatro dias do sepultamento, eu avisei a ela que precisaria voltar ao trabalho no dia seguinte, mas ela perguntou se eu não poderia passar mais um dia em casa. Sabendo como as coisas eram no meu emprego, ela chegou a dizer que, se precisasse, ela mesma ligaria para meu chefe para pedir.

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Conversei com meu superior e expliquei a situação, mas ele disse que não achava bom eu ficar mais um dia fora por conta do que as pessoas do escritório poderiam dizer. Como eu era divorciada, por lei não tinha direito à licença, então falei para ele que se essa era sua preocupação, poderia descontar minhas ausências dos 45 dias de férias vencidas que a empresa não tinha me deixado tirar até então.  Ele só disse “ok”.

“Meu parceiro morreu e meu chefe disse que imaginava que eu devia mesmo ter muitos problemas, mas que, independente disso, a empresa vinha em primeiro lugar.”

Depois de 20 dias, tive minha avaliação semestral. Durante nossa reunião, ele disse que imaginava que eu devia mesmo ter muitos problemas, uma vez que ter um só casamento já significava ter muitos problemas, quem dirá dois (já que eu havia sido casada anteriormente), mas que, independente disso, a empresa vinha em primeiro lugar.

*as entrevistadas não quiseram revelar a identidade

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Quando a relação tóxica é na família

Carla Pereira

Meus pais são da geração que não queria ter filhos de verdade mas que teve pra cumprir as etapas de namorar, casar, ter filho… Eles sempre odiaram tudo em volta de ter filhos. Odiavam ter que levar nos lugares, ter que brincar, ter que cuidar. Tanto que acostumei a fazer o caminho da escola pra casa a pé (que era bem longe) porque eles ficavam jogando a responsabilidade pro outro e, no fim, nenhum vinha. Perdi conta das vezes que fiquei até as luzes apagarem na escola porque ninguém apareceu.

“Minha mãe me diminuía constantemente, seja falando que eu estava gorda (pesando 50 kg com 1,67m) ou que eu era ‘metida a certinha’ quando eu não me sentia bem quando ela me obrigava a fazer algo imoral”

Não os culpo por isso mas, conforme fui crescendo, a relação com minha mãe foi se tornando tóxica. Ela me manipulava pra fazer tudo pra ela e me diminuía constantemente, seja falando que eu estava gorda (pesando 50 kg com 1,67m) ou que eu era “metida a certinha” quando eu não me sentia bem quando ela me obrigava a fazer algo imoral. Ela também sempre teve um certo desequilíbrio em que a reação dela era muito maior do que deveria. Se eu deixava algo fora do lugar, ela reagia com gritos, violência física (que chegava a me deixar roxa e ela me obrigava a usar casaco para ninguém ver) e fazendo eu me sentir culpada, isso até mesmo depois de adulta. Até por conta disso eu sou extremamente organizada mas trato na terapia outros efeitos dessa relação como problemas com a aparência e o medo constante de ser um estorvo pros outros, o que me impede de pedir qualquer tipo de ajuda quando preciso.

“Ela começou a se medicar e está menos agressiva (apesar de no começo ainda me culpar, ‘por culpa sua eu tenho que tomar remédios’)”

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Eu aprendi a não ceder mais às manipulações dela. Moro em outra cidade, ainda nos vemos e temos uma relação que, hoje, é boa. Ela começou a se medicar e está menos agressiva (apesar de no começo ainda me culpar, “por culpa sua eu tenho que tomar remédios”). Mas eu percebo que nossa relação só está melhor porque eu finalmente parei de me curvar às manipulações dela. Foi muito difícil no começo e ela ainda me mandava “textão”, por WhatsApp, e-mail, onde conseguia, me culpando por tudo quando eu não atendia o telefone. Mas aos poucos, ela foi vendo que isso não tinha mais efeito e foi parando. Nossa relação hoje está muito melhor, vejo que ela se esforça para ser uma pessoa mais agradável.

R.P.*

Na minha frente, meus sogros me tratam bem, mas sempre percebi que eles não gostavam de mim. Sinto diferença em relação ao tratamento com o marido da minha cunhada e comigo.

Por vezes meus sogros falaram para o meu marido não se casar comigo, porque tenho problemas com ansiedade. Mas nunca foi diretamente comigo e sim com ele, pra ele ficar em dúvida.

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“Pra mim, é uma relação tóxica porque é aquela situação em que você ainda se acha errada, mesmo sabendo que não está”

Uma vez eles chegaram a oferecer uma viagem de intercâmbio pra ele desistir de mim. Já atualmente falam que sabem que não vou deixá-los ver nossos filhos, o que faz a gente repensar se vamos mesmo ou não ter filhos.

É uma situação bastante passiva-agressiva. Me sinto mal por achar que exagero, mas se fosse qualquer outra pessoa me contando a mesma coisa, eu não acharia. Pra mim é tóxica porque é aquela situação em que você ainda se acha errada, mesmo sabendo que não está.

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Quando a relação tóxica é um amigo

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(South_agency/Getty Images)

Letícia Sevalli

Vivi uma relação tóxica com uma amiga quando ainda estava na escola, durante cerca de cinco anos. Ela era aquela menina que todo mundo gostava, popular, mais pra frente. Eu também era, mas ela era descoladona e eu mais na minha.

“Ela me usava como queria”

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Como eu tinha conta na cantina do colégio, na hora do intervalo ela sempre fazia com que eu pagasse as coisas para ela. Eu não conseguia dizer não, porque sofria bullying caso contrário. Além disso, ela sempre pegava meu celular para ligar pra outras pessoas e, como já falei, eu não conseguia recusar. Ela me usava como queria.

Essa “amiga” sempre se aproveitou muito de mim mas, de certa forma, isso me ajudou. Hoje não temos mais relação, mas por conta dela tive que fazer terapia naquela época e assim aprendi a me posicionar melhor, a dizer não e a não deixar se aproveitarem de mim.

C.R.*

Minha experiência foi o clássico: amizades de infância que faziam sentido mas fomos nos tornando pessoas diferentes ao crescer. No meu caso, era uma grupo de meninas da escola. Durante a adolescência e vida adulta, elas tinham o hábito de enviar fotos de meninas cujos namorados curtiam no Instagram naquela pegada “olha que testa enorme, ridícula.” Eu não só nunca entendi porque isso as fazia se sentir melhor como, tendo dismorfia, eu me sentia mal com aquilo tudo. Aprendi a apenas não dizer nada porque quando eu respondia que “achei bonita”, elas tiravam sarro. Elas também nunca gostavam das meninas “de fora” que os meninos do nosso grupo de amizade traziam.

“Era comum fazer piadas às custas da outra, mesmo que o alvo não estivesse à vontade com aquilo”

Essa competição também acontecia internamente. Não foi única a vez que descobrimos conversa de uma delas com garotos em que eles diminuíam a amiga para elogiar (aquele “você é muito mais bonita que a fulana”) e ela demonstrou adorar ouvir aquilo, respondendo com risos e flertes. Também era comum fazer piadas às custas da outra, mesmo que o alvo não estivesse à vontade com aquilo, para ser a mais “descolada” do grupo.

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Eu me afastei bruscamente porque estava passando por um período muito difícil em que “surtei”, mas não me arrependo. Não desejo o mal para elas de maneira nenhuma. Pelo contrário, fico feliz quando sei que elas estão bem, mas acho que nos tornamos pessoas diferentes e eu não me sentia bem naquela ambiente mais. Eu até tentei retomar contato um tempo depois, em que já estava num lugar melhor, e elas me adicionaram no grupo de WhatsApp apenas para fazer um segundo grupo, sem mim, e ignorar o primeiro. Não as culpo, às vezes com minha posição de não gostar dessas atitudes, elas se sentiam julgadas e viram, com o período que fiquei longe, que ficavam mais à vontade sem me ter no grupo.

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Efeitos de uma relação tóxica

É fato que pessoas tóxicas são totalmente nocivas para a saúde e autoestima das vítimas. Os malefícios, contudo, são muito mais extensos do que podemos imaginar.

A começar pelos danos mentais. Os relacionamentos tóxicos deixam as pessoas totalmente fragilizadas e sem autoconfiança, levando a problemas como ansiedade, ataques de pânico e até mesmo depressão.

Marina ressalta, contudo, que os efeitos psicológicos, muitas vezes, também podem se manifestar fisicamente. “Se você não consegue olhar para aquilo que está te incomodando diretamente, seu corpo falará através de doenças psicossomáticas”, ela explica.

Hora de se afastar

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(Peter Dazeley/Getty Images)

Diante do caos e todas as dificuldades que a sociedade enfrentou (e ainda enfrenta) neste ano, com a pandemia do coronavírus, muitas relações ficaram estremecidas ou até mesmo chegaram ao fim – o que, se nos referirmos a situações tóxicas, não é de todo mal.

Com a necessidade do isolamento social, muita gente precisou se afastar de pessoas próximas e, em algumas situações, isso foi totalmente benéfico para a saúde mental delas.

A partir do momento em que a conversa já não é mais uma solução viável, ambas as profissionais concordam que se distanciar das pessoas que lhe fazem mal é a melhor forma de se proteger de situações deste tipo.

Tente ter um diálogo e dizer como as atitudes da pessoa fazem você sentir. “Se depois da conversa, você ainda percebe que a pessoa não entende, impõe as coisas o jeito dela, pensa que sabe o que é bom para você, não se coloca no seu lugar e não mostra empatia, saia de perto”, orienta Marina.

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E quando é no trabalho ou família?

Em situações que envolvem parentes, onde buscar espaço nem sempre é uma medida viável no dia a dia, o rompimento pode se tornar ainda mais difícil. Ainda assim, Marina enfatiza que a melhor saída é manter uma distância afetiva para não prejudicar sua saúde mental.

Ou seja, procure entender que, apesar de você ter que ter uma reação social com essa pessoa, não passa disso: uma relação social. E deixe a parte afetiva para outras relações da sua vida. Assim, fica mais fácil manter a distância emocional e não se chatear com as atitudes do outro.

Já no ambiente de trabalho, a dica é evitar dividir informações de sua vida pessoal e não ter muita proximidade. “Estas são relações disfuncionais que impedem o progresso da vítima. A pessoa tóxica pensa apenas no bem estar dela, portanto, se desvincular fará bem para a sua saúde e irá favorecer sua evolução profissional”, alerta Marilene Kehdi, psicóloga em São Paulo.

 

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Eu posso ser a pessoa tóxica?

Sabemos que todos somos seres passíveis de erros, certo? Afinal, é dessa forma que aprendemos e evoluímos ao longo da vida, em busca de nos tornarmos melhores. Mas e se um dia alguém disser que você é uma pessoa tóxica?

Assim como todas as vezes em que cometemos equívocos, o primeiro passo para enfrentar esta situação é ouvir e aceitar que, sim, você pode ser alguém nocivo para a saúde mental de quem lhe disse isso.

O primeiro passo é ouvir e aceitar que, sim, você pode ser alguém nocivo para a saúde mental de alguém

De acordo com Marina, buscar entender como seu comportamento se tornou tóxico é uma boa forma de começar. “Não olhe só para o outro e tenha uma atitude defensiva. Pare, olhe para si e faça terapia, pois assim você poderá enxergar suas próprias questões e, com isso, entender porque está provocando nas pessoas a sensação de ser alguém tóxico, orienta.

Marilene concorda: “Buscar uma ajuda especializada é importante para praticar o autoconhecimento e entender a causa desse seu comportamento, a fim de modificá-lo definitivamente”.

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(xxxx/Thinkstock/Getty Images)