Mito
Se tem algo que eu gosto muito é de mitologia. Conhecer a história dos deuses, das fadas, dos gnomos e até das nossas lendas como o Curupira ou a mula sem cabeça. Muitas dessas histórias foram criadas para entendermos fenômenos que não conseguíamos explicar, como a criação do mundo ou um simples relâmpago. Entretanto, com o surgimento da ciência, muitos desses mitos foram explicados e pudemos entender a verdade sobre essas lendas. Curiosamente, fui olhar no Google o que é mito e lá diz que são histórias fantásticas de transmissão oral, cujos sinônimos são fábula, narrativa, lenda. Logo, a partir dessa definição, histórias como as que dizem que tomar leite com manga entorta a boca, podem ser classificadas como mitos. Seguindo essa lógica, vou apresentar alguns mitos do movimento e do treinamento que muitos usam até hoje, achando que são respaldados em verdades científicas e que acabam se tornando causas de dores e lesões.
O MITO DO DEITAR CORRETO
Uma coisa que ouvimos muito é alguém reclamando de dor, alegando que dormiu de mal jeito. Mas o que seria dormir de mau jeito? Se admitimos que dormimos de mal jeito significa que há um jeito certo de dormir. E qual seria? Eu, por exemplo, durmo muito bem de lado e minha esposa dorme muito bem de barriga para baixo. Já minha filha, adora dormir de barriga para cima. Todos acordam bem todo dia sem reclamar de dores relacionadas ao sono. Como vemos aqui, abordamos todas as posições de dormir e nenhuma delas foi prejudicial a ninguém.
Suponhamos que dormir de lado seja considerado errado. Bom, o que é errado não passaria ileso por 44 anos. Algo para ser considerado errado deve ser para todas as pessoas. Pular do décimo andar de um prédio é errado para qualquer um. Dormir, não importa a posição, não. Mas por que algumas pessoas, dependendo da posição que dormem, acordam com dores? Isso tem a ver com a capacidade do corpo desta pessoa de ficar em determinadas posições. Por exemplo, quando eu deito de lado, a força da gravidade está agindo na lateral do meu corpo, provocando algumas compressões e flexões laterais. Há também a força de reação do solo (ou nesse caso, do colchão) que também geram as mesmas reações. Há ainda pontos de pressão que são gerados em determinados lugares no meu corpo ao deitar na posição lateral. Caso esses pontos já tenham algum incômodo ou pressionem alguma lesão, ao passar muito tempo nessa posição irei agravá-los. Se meu corpo não tem a capacidade de responder as demandas das forças físicas na posição lateral, porque, por exemplo, tem alguma limitação nesse plano de movimento, em muito pouco tempo nesta posição ele se incomodará e se não mudarmos de posição, possivelmente esse incômodo aumentará e se transformará em dor. Isso serve para qualquer posição ao deitar.
Então, o que vemos aqui não é que exista uma posição ideal de dormir, mas sim, para cada posição, existe uma demanda diferente e que se seu corpo não der conta, a experiência será ruim. Quando você perceber que alguma posição te traz problemas mesmo que você goste dela, o que deve fazer é prover ao seu corpo, através do treinamento 3Dimensional, condições deste de realizar essa tarefa. Outro ponto aqui também muito importante, é que toda e qualquer posição exige do corpo uma resposta a essa demanda. Porém, nossos recursos são limitados e em algum momento ele se esgota. Vou dar um exemplo. Se ficarmos em uma perna só, exigiremos muito desse corpo, mas conseguimos realizar essa tarefa. No entanto, se ficarmos muito tempo nessa posição, esse recurso se esgota e teremos que mudar de posição.
Notem que quando estamos muito tempo de pé, mesmo com as duas pernas, balançamos e distribuímos o peso de um lado para o outro o tempo todo. Nosso corpo faz isso naturalmente. E isso vale para todas as posições. Por isso, quando dormimos nos mexemos. Esse é o normal. Entretanto, quando tomamos remédios para dormir, álcool e drogas, mudamos muito o padrão do sono e muitas vezes ficamos muito tempo na mesma posição. O corpo até sente que está ruim, mas não reagimos porque estamos “capotados”. E quando acordamos, parece que passou um caminhão em cima da gente. Isso também acontece quando estamos muito estressados. Tendemos a ficar mais rígidos e isso afeta nossa naturalidade ao dormir. Um outro ponto também muito importante tem a ver com o mito. Ao acreditarmos que existe uma posição adequada para dormir, nos policiamos para ficar nela o máximo de tempo e mesmo que o corpo queira desesperadamente mudar de posição porque ele sente que precisa recuperar as partes do corpo responsáveis pela demanda daquela posição, insistimos nela porque julgamos correto e isso faz com que ele produza dor ao invés de descansar.
O MITO DO SENTAR CORRETO
Esse também é muito comum. Temos uma ideia errada que o correto de se sentar é a 90 graus. E de onde vem essa ideia? De que essa postura te provoca um alinhamento na coluna e, se está alinhado, só pode ser melhor que desalinhado, né? Pois bem, mas a natureza não concorda com você e ela tem suas leis que são inexoráveis. Uma delas é a lei da gravidade e os braços de alavanca e seus torques. O que acontece é o seguinte. Quando estamos de pé, nosso centro de gravidade está bem no meio do corpo. Esse centro de gravidade responde ao centro de massa. Se inclinamos o corpo para frente, jogamos massa para frente do centro de gravidade e isso faz com que ele seja deslocado para frente. Para não cairmos, toda cadeia posterior do nosso corpo tem que trabalhar mais agora para segurar esse corpo e esse braço de alavanca gerado aumenta a tensão na coluna, principalmente na lombar. Quando sentamos também deslocamos massa para frente, porém agora essa massa vem das pernas que estão não frente do nosso centro de gravidade, deslocando o mesmo para frente e gerando aumento da demanda na cadeia posterior, e por estar sentado, ainda mais na lombar.
Uma forma menos acadêmica de provar que isso acontece seria colocando uma pessoa acometida por tetraplegia sentada a 90 graus. Por não ter o controle dos músculos da cadeia posterior, ela sempre cairá para frente e nunca para trás porque o centro de gravidade dela está deslocado para frente, “puxando-a” nessa direção. Com isso, concluímos, sem precisar estudar física (algo que amo fazer e sou formado em mecânica) que se estamos sentados a 90 graus e não caímos, é porque alguém está nos segurando e esse alguém são nossos músculos das costas, principalmente. E como vimos acima, em algum momento esses músculos cansarão e pedirão para você mudar de posição.
Uma boa experiência seria colocar algumas pessoas em uma sala, sentadas a 90 graus para assistir um filme. Após um tempo assistindo esse filme, todas as pessoas escorregariam na cadeira para frente a fim de ficar mais confortável. Se todas as pessoas fazem isso, significa que não é uma questão de escolha ou de estilo, mas de natureza. Deve existir algo por trás disso. E realmente existe. A física. Ao escorregarmos na cadeira, deslocamos também massa para trás do centro de gravidade, visto que minha cabeça agora ficou para trás do meu umbigo. Se tenho massa para trás (cabeça) e massa para frente (pernas), meu centro de gravidade fica mais próximo da posição neutra dele e, com isso, elimina ou reduz os braços de alavanca e o estresse na coluna. O corpo escolhe essa posição para descansar e aliviar as cargas que ele estava suportando, gerando para ele recursos para continuar ali.
Isso não é novidade, um estudo russo dos anos 70 já falava que a melhor posição para a coluna ao sentar é a 120 graus de inclinação. O problema acontece porque, ao acreditarmos no mito de sentar a 90 graus, nos policiamos para ficar nessa posição e, quando o corpo escorrega na cadeira para descansar, lembramos que o “correto” é 90 graus e voltamos para posição que estava nos gerando estresse e produzindo mais dor e tensão lombar. Não sei quantas vezes na minha carreira profissional falei para meus clientes inclinarem um pouco para trás o banco do carro e aquela viagem que estava muito difícil de fazer foi viável. A solução é simples, o difícil é convencer alguém que está em uma crença imensa no mito, mesmo que isso mostre claramente que os resultados não são bons. Está com dúvidas? Na próxima viagem longa de avião, faça metade da viagem a 90 graus e a outra metade a 95, que é a inclinação da classe econômica e você perceberá a diferença desses 5 graus.
O MITO DA COLUNA NEUTRA
Muitas das dores de coluna que ajudei a melhorar tinham a ver com esse mito de que minha coluna tem que estar retinha. Quando olho para uma coluna, vejo 25 ossos. Isso me sugere que esta foi feita para se movimentar. Além disso, esses ossos não ficam alinhados, eles estão dispostos em curvas em diferentes ângulos. Essas curvaturas da coluna são funcionais. Ou seja, não estão ali por desleixo ou erro de projeto. Estão ali porque, dessa maneira, distribuem melhor as cargas às quais a coluna é submetida. Logo, para preservar a coluna. Quando a retificamos ou a deixamos retinha, perdemos essa capacidade. Mas, essa crença é tão forte que muitas pessoas vivem se forçando a manter a coluna alinhada e conseguem isso às custas de muita tensão e força. E também de muita dor.
Entretanto, como já vimos nos exemplos acima, por acreditar no mito, sentimos dor e insistimos no erro. Ou seja, estou com dor e me policio para deixar a coluna o mais reta possível para “preservá-la”. Porém, isso gerará mais estresse e, como consequência, mais dor. Mas, esse é um mito tão difundido que mesmo mostrando claramente sua ineficiência as pessoas têm a certeza que se não fosse por isso, estariam muito piores, afinal estão fazendo o que é certo. Uma forma de mostrar isso para você de uma forma simples seria pegar algo no chão, como o celular, flexionando a coluna inteira e depois fazer o mesmo movimento evitando flexioná-la. Foque apenas na tensão da sua coluna e perceberá a diferença.
Esse mito é tão arraigado na nossa cultura que existe uma técnica de recuperação postural baseada nele e é muito comum pessoas chegarem aqui dizendo que sentem dores fortes na coluna há muito tempo e só não estão piores porque estão fazendo essa técnica há quatro anos. Essa crença cega tanto essas pessoas fragilizadas por tamanha dor que não percebem que se estão fazendo algo por quatro anos e não melhoram, é porque não está funcionando. Imagine você fazendo aula de inglês por quatro anos e não sai do verbo “to be”? Você falaria que ainda bem que está estudando senão estaria pior? De jeito nenhum. Mas, o mito cega e tira nossa observação da realidade.
Existem muitos outros mitos para abordar. Vou citar alguns e prometo falar de cada um deles com mais detalhes no futuro. Entre esses mitos, destaco o do alongamento que previne lesão (sim, é um mito… não há uma única pesquisa cientifica que prove isso), o mito do fortalecimento, o mito da hipertrofia, o mito da rotação da coluna, do manguito rotador, do glúteo médio e do abdominal transverso. Mas, se fosse fazer aqui neste texto ficaria muito grande e talvez eu também esteja preso a um mito de que as pessoas, hoje em dia, não gostam de ler textos grandes. No entanto, como eu disse, abandonar os mitos é muito difícil.
Por fim, assim como falei no começo sobre o sinônimo de mitos, também fui ao Google checar o antônimo ou, no popular, o oposto dos mitos. Olha que curioso o que encontrei para definir o oposto do mito: honestidade, verdade, realidade. Vale a reflexão.
Forte abraço, Samorai