Correr descalço
Hey folks! Na área esportiva, seguramente uma das maiores indústrias é a dos calçados. Alguns tênis chegam a custar mais de mil reais. A justificativa para isso é que eles absorvem impacto, aumentam a performance, previnem lesões. Wow! Dado tudo isso parece que um bom par de tênis é realmente um excelente investimento. Vamos olhar essas premissas com os óculos 3D. E isso implica em entender um fenômeno a partir de um olhar complexo, em corpo, mente, espírito, em qual contexto ele está inserido. Em qual ambiente.
Quando abordamos a necessidade de se usar um tênis, principalmente para correr, partimos do princípio de que sem ele teríamos perdas ou riscos. Ou até mesmo que somos incapazes de executar sem ele. Por exemplo, se eu quiser voar, preciso de algo para me auxiliar, porque o corpo humano sozinho é incapaz de voar. Mas correr? É isso que vamos ver agora.
Quando estudo as funções humanas 3dimensionalmente percebo que essencialmente o corpo foi feito para manipular coisas com as mãos, posicionar a cabeça na posição de melhor ângulo e se deslocar de forma bípede. Essas talvez sejam as funções primordiais. E acredito nisso porque ao estudar as funções, observamos que o corpo tem muitas facilitações mecânicas para cumprir essa tarefa, ao contrário de outras que ele até faz, mas não exatamente foi feito para fazer.
Um bom exemplo seria nadar. É fácil perceber que somos capazes de nadar. Mas, comparado ao mais lento dos peixes entendemos claramente a diferença entre ser capaz de fazer algo e ter isso como função primordial. Peixes foram feitos para nadar. Humanos são capazes de nadar. Nos peixes podemos perceber várias adaptações e facilitações mecânicas que os deixam eficientes na tarefa. E o que acontece quando os colocamos fora da água? Eles deixam claro que para andar somos muito mais eficientes que eles.
Observações assim vamos encontrar na natureza o tempo todo. Adaptações ao frio, ao calor, às altas temperaturas e a algumas condições específicas. Os patos, por exemplo, têm adaptações que facilitam que eles nadem, comparados às galinhas que não as têm. O que quero concluir aqui é que um estudo da natureza e das funções nos ajuda muito a entender o porquê de cada forma. Ou, como diria meu professor Gary Gray, função segue forma e forma segue função. Dito isso, se quero entender uma função posso olhar a forma. E se quero entender uma forma posso olhar para uma função.
Pensando assim vamos nos aprofundar no corpo humano. Quando vejo o pé, a primeira coisa que percebo é o quão complexo ele é. Ele é um verdadeiro milagre, dotado de uma incrível tecnologia. E bingo! Ele possui diversas adaptações que nos ajudam a caminhar e correr. Olha que interessante. Quando o pé toca o chão, pensando em uma corrida, a carga exercida sobre ele pode chegar a dez vezes o peso corporal. Isso poderia gerar um tremendo impacto, desconforto e até uma fratura de algum osso, tamanha a magnitude desta pancada.
A principal tarefa do corpo, e começando principalmente pelos pés, neste cenário passa a ser desacelerar esse choque. Porém, logo após esse primeiro contato com o solo, o corpo passa por cima deste pé e a sua função agora passa a ser a propulsão. Ou seja, eu quero empurrar esse chão da maneira mais eficiente possível. E é aqui que mora o primeiro desafio. Ou eu sou bom em desacelerar ou em prover propulsão.
Por exemplo, pense em um bungee jump. Para gerar um conforto em quem salta, o elástico tem uma capacidade de desacelerar essa queda, mas não tem uma capacidade de propulsão grande, porque o corpo não volta sequer ao ponto de partida. Agora imagine um elástico mais duro e com pouca capacidade de desacelerar. Ele possivelmente daria um tranco e não seria confortável, mas funcionaria como um estilingue. Arremessaria a pessoa longe.
Uma cama elástica funcionaria igual. Quando ela está muito esticada conseguimos saltar bem alto, mas ela desacelera pouco. Se eu afrouxar a cama elástica, ela amortecerá melhor a queda, mas restituirá menos. Pense em uma espuma. É muito bom para absorver impacto, mas ruim para impulsionar. Essa é a natureza dos materiais. Ou se deformam e absorvem, porém não impulsionam ou são mais resistentes e fazem o inverso. Mas, o nosso pé faz os dois.
Dada a mecânica do nosso corpo, na marcha ou na corrida, ao entrar em contato com o chão o pé tem uma forma e após o corpo passar por cima, ele passa a ter outra, executando assim as duas funções com maestria. Não quero me aprofundar muito na parte teórica, porque não é a proposta aqui, mas para os nerds de plantão, existe um mecanismo de congruência ligado ao calcanhar. Se ele estiver em eversão, essa congruência entre os ossos do pé aumenta e o pé fica mais mole, assim absorvendo mais. Já quando o calcanhar entra em inversão, essa congruência diminui e o pé fica muito mais rígido, empurrando assim o chão com maior eficiência. Usando o exemplo da cama elástica, seria algo como enquanto estamos aterrissando, o elástico fosse mais mole, mas assim que terminasse de absorver ele ficasse muito mais rígido para impulsionar.
Nada faz isso. Só o pé. Quando entramos em contato com o chão, o calcanhar está em eversão e, com isso, o pé fica mais mole e assim que o corpo passa por cima do pé, no momento em que o pé necessita empurrar o chão, o calcanhar já está em inversão, tornando-o mais rígido. Isso é um mecanismo de eficiência. E vamos encontrar vários deles ao longo do corpo que favorecem a marcha ou a corrida. Na coluna lombar, por exemplo, um mecanismo de descompressão das facetas lombares atua durante a corrida ou caminhada.
Em suma, temos vários mecanismos de eficiência mecânica e alívio de estresse enquanto corremos. Por isso, essa atividade é confortável e fácil de executar. E mesmo que você tenha achado estranho essa última frase, pensando que correr não é tão fácil assim, vou exemplificar. Eu tenho 100 kg. Imagine o tamanho da tarefa que é deslocar uma massa dessa magnitude. É um trabalho enorme. Logo, percorrer 100 metros deve ser muito difícil. Coloque dois sacos de cimento de 50 kg em um carrinho de mão e percorra 100 metros com eles. Entenderá como deslocar 100 kg é complexo. Entretanto, ando 100 metros, 200 metros, 10 km se precisar. Idem a correr. Tudo isso em função do nosso corpo ter em sua premissa principal a marcha.
Bom, como visto nosso corpo foi feito para correr. No entanto o tema aqui é correr descalço. Ou a necessidade de se usar um tênis para correr. Os argumentos de que eles absorvem impacto e aumentam a propulsão não colam, porque ou eles fazem uma coisa boa ou outra. Lembro-me quando ainda estava na universidade e uma grande empresa do setor lançou um tênis cheio de molas ao longo dele todo e garantia que ele fazia as duas coisas. Levamos esse tênis ao laboratório de biomecânica e constatamos que não era verdade. Além de não cumprir o que prometia, ainda mudava o padrão da marcha, gerando estresse na coluna.
Várias pesquisas mostram que ou os tênis fazem bem uma coisa ou outra. Há também o argumento de que ele previne lesão. Se isso fosse verdade as pessoas não se machucariam mais, já que todas correm de tênis. Mas, isso não é um argumento suficiente. Então vamos a elas, às pesquisas. Muitas pesquisas têm mostrado justamente o contrário, que correr sem tênis diminui a incidência de lesões. Algumas outras pesquisas mostram que não altera a incidência de lesões. Entretanto não temos pesquisa que mostre que tênis previne lesão.
Um outro argumento pode ser que usar tênis melhora a performance, afinal nas olimpíadas ou mundiais todos estão de tênis. Idem nas maratonas. Porém uma boa razão seja o fato de que é obrigatório correr de tênis nessas provas. Você já imaginou que repercussão negativa para a indústria do calçado o vencedor das Olimpíadas correr descalço? Para evitar isso é melhor proibir. Porém, isso já aconteceu. Em 1960, nos jogos de Roma, o etíope Abebe Bikila venceu a prova e bateu o recorde olímpico correndo descalço. Nos jogos seguintes ele venceu novamente, mas dessa vez foi proibido de correr descalço. Bikila é considerado por muitos o maior maratonista de todos os tempos.
Sobre correr descalço, na maioria dos países africanos muitos atletas passam a maior parte do tempo correndo descalços. Alguns até 18 anos sequer calçaram um tênis na vida. E eles têm os maiores resultados nesse tipo de prova. Possivelmente, se pudessem, optariam por competir descalços. Se pudessem. Só que não. O fato é que nenhum tênis consegue reproduzir a eficiência do nosso corpo. Só que, nos dias atuais, não andamos mais descalços. E como nosso corpo responde a uma lei de uso e desuso, ou seja, se estimula ele melhora e se para de estimular, ele regride. Por estarmos sempre de calçados, transferindo para estes a função de desacelerar e propulsionar, com o passar do tempo, alguns mecanismos do corpo vão perdendo eficiência e assim, nos tornando dependentes do tênis. Sendo assim, correr de tênis passa a ser mais seguro e eficiente, não pelo tênis em si, mas porque nosso corpo desaprendeu a fazer. A boa notícia é que se voltarmos a estimular, ele volta a evoluir nesse quesito e com o tempo voltar a ter alto rendimento e segurança.
Então, o que você me recomenda é correr amanhã descalço? Não. Tem mais elementos que precisamos levar em consideração. O primeiro deles é que você está desadaptado. Então o ideal é ir se adaptando aos poucos, progressivamente. Faça seu treino como você sempre fez e no final ou no começo, corra ou ande, dependendo do seu nível, uns 2 minutos descalço. Faça isso por um tempo e vá aos poucos progredindo. Lógico que se sentir alguma dor, pare a atividade imediatamente. Uma boa ideia é procurar um profissional especializado em treinamento 3Dimensional para que ele possa fazer uma avaliação dos seus movimentos e detectar suas compensações no corpo e corrigi-las. Visto que seu corpo agora precisará fazer o trabalho que outrora era executado pelo tênis. Então, para isso, ele precisa estar bem equilibrado.
Mas ainda há uma questão. Dois pontos a se observar. E esses podem ser resolvidos com a mesma solução. Um deles é o fato de que vivemos em uma sociedade que tem suas regras sociais e de comportamento. Não é bem visto, para dizer o mínimo, andar descalço por aí. Talvez em alguns lugares nem seja permitido entrar sem o calçado. Um outro problema é que apesar de o pé descalço ser infinitamente melhor que o tênis na eficiência da corrida, tem um quesito que ele perde. Nas nossas cidades principalmente pode ter de tudo no chão. Cacos de vidro, fezes de cachorro, prego, asfalto superquente, enfim, o que não falta são opções para cortar, perfurar, ferir, queimar nossos pés.
Qual seria a solução para isso? Um calçado que me protegesse desses ferimentos, mas não interferisse nas funções do meu corpo, em especial na função dos meus pés. E esse tênis já existe. São os chamados tênis minimalistas. Todas as principais empresas do segmento de tênis esportivos possuem seu modelo minimalista. Alguns têm até o formato dos pés, com os dedinhos e tudo, como se fosse uma luva. Ou uma meia com dedinhos. Alguns têm solas vulcanizadas, nas quais você pode pisar em um prego e não se ferir. Mas, o mais importante: eles não interferem nos movimentos dos seus pés. Esses tênis podem ser um bom aliado para você que quer usar a corrida como um exercício para aprimorar as capacidades do seu corpo. E de certa forma faz um casamento ganha-ganha entre a ciência, a biologia e o mercado, porque efetivamente um contribui com o outro sem precisar criar dependência, promover ganhos inexistentes, gerar lesões em troca da necessidade de se vender tênis.
Dá para ser honesto e oferecer um produto que contribua de verdade. Dá até para pensarmos que podemos construir uma sociedade mais saudável. E se tem uma corrida que se faz necessária, seja de tênis ou sem, é essa. A corrida para uma sociedade saudável. E de verdade. Bora correr!
Forte abraço,
Samorai