Nátaly Neri: a internet como palco de transformação pessoal e para o mundo
A criadora de conteúdo conversa com Boa Forma sobre sexualidade, produção de conteúdo para a internet, espiritualidade e seu relacionamento
Nátaly Neri é um fenômeno da internet. Mas, talvez, não do jeito que você imagina. Apesar do grande número de seguidores nas redes sociais (principalmente no YouTube e no Instagram), a sua fenomenologia está muito distante dos números e bastante atrelada às pessoas.
Com uma comunidade extremamente engajada e com quem promove trocas constantes, Nátaly diz ser como aquela “tia distante que passa um tempo sumida e volta com presentes”: ela aprendeu, nos seus anos de internet, a viver primeiro e compartilhar depois. E esse formato lhe rendeu um nível de desenvolvimento pessoal, além de um fortalecimento nas suas pautas do coração, como a negritude, a pansexualidade, o veganismo e a moda sustentável, que tornam a sua presença online um respiro em meio à padronização.
Falar sobre vulnerabilidades, dizem, é essencial para fazer escola na internet. Mas Nátaly encontrou uma forma de fazê-lo que não só gera identificação, como trocas e aprendizados constantes. É o ensino-aprendizado em sua essência quando, antes de falar, existe todo um bastidor de autodescoberta e vivências que se mantém offline. O que vai para o online é o resultado de uma investigação interna que surge dentro de uma estética única, com uma linguagem didática e que vai na contramão dos discursos de ódio.
Cientista Social, estudiosa da aromaterapia, amante dos brechós e vegana, Nataly se encontrou na pluralidade e leva as suas múltiplas facetas para as plataformas que, hoje, se tornaram um palco para a vida em sociedade. Depois de muito gritar, ela entendeu que só teria o seu espaço sob os holofotes se aprendesse a não buscar a sua atenção, mas compartilhar o que sabe com o objetivo de fazer pelos outros o que fizeram por ela: tornar-se uma ponte para o conhecimento.
À Boa forma, ela fala sobre o surgimento da Nátaly criadora de conteúdo, o seu relacionamento com Jonas Maria, e o seu reencontro com a espiritualidade.
A VIDA NA INTERNET
BOA FORMA: Nátaly, você construiu uma carreira na internet. Você pode contar um pouco do porquê você decidiu criar um canal no YouTube?
NÁTALY NERI: Foram vários fatores que culminaram com a minha presença na internet. O momento em que eu estava na faculdade, uma mudança de pensamento, ter percebido que eu tinha o que ensinar… Vários momentos da minha vida culminaram em “Eu tenho que ensinar, eu tenho tempo, eu não ligo pro que as pessoas pensam de mim, então, por isso, eu não vou me sentir inferiorizada ou envergonhada de dizer que eu tenho um canal”. Nisso, eu consegui dar o meu primeiro passo, porque eu já consumia internet e produtoras de conteúdo há muitos anos, e sempre tinha uma vontade, mas as coisas ainda não eram para mim naquele ponto, eu tinha outros objetivos.
Mas quando aconteceu essa virada?
Eu estava em Ciências Sociais, fazendo iniciação à docência, e a gente ia em escolas do Ensino Médio para dar aula de sociologia para adolescentes de 16 e 17 anos. Eu aprendi muito sobre como se ensina e como se desperta o prazer em aprender, e comecei a pensar “E se eu começasse a usar essas ferramentas que eu estou aprendendo aqui, no que tange a dar aula, para trazer atenção e desejo de aprendizado para temas que para mim são importantes?”. Na época, o foco era principalmente feminismo, questões de gênero/raciais e sexualidade. Ao longo dos anos, isso também foi se elaborando, eu trouxe mais veganismo, sustentabilidade, mas desde sempre também falando sobre moda de brechó de um ponto de vista mais conceitual, não só a prática, mas entendendo mais o impacto que isso tinha socialmente.
Quando você decidiu entrar para a internet, foi uma coisa bem planejada, né? Diferente do “ligar a câmera e sair falando”.
Eu planejei porque eu já sabia o que era produção de conteúdo, eu já acompanhava blogueiras e já sabia o que eu queria. Eu não queria que as pessoas quisessem saber sobre mim. Eu não queria que elas tivessem interesse na minha história, porque eu vi uma produção muito pouco saudável do ponto de vista de pessoas que acordavam e dormiam com o celular ou uma câmera no rosto, que faziam vlog de absolutamente tudo o que acontecia na vida delas, que não tinham um momento de privacidade… Se aparentemente eu vejo 100% da vida da pessoa, ou ela vive muito mais de forma oculta ou ela expõe tudo o que ela vive, e eu tinha muito medo disso.
Isso foi bom porque me trouxe muita seriedade e disciplina para entender os limites do meu trabalho na internet naquele momento, mas também se tornou um problema, porque eu me desumanizei muito por conta disso.
O “SLOW BLOGGING”
Você criou mesmo um meio bastante diferente de usar as redes sociais, que é mais lento, sem conteúdo o tempo todo só para ter conteúdo. Como é isso e por que você decidiu seguir dessa maneira?
Eu trato como uma distância. Não é que eu desapareço porque eu não quero estar, eu desapareço, às vezes, porque eu estou aprendendo as coisas, eu estou vivendo processos primeiro para depois significá-los, entender se tenho a capacidade de comunicá-los e passá-los para frente e, só aí, eu trago algumas conclusões e primeiras impressões.
Claro que esse processo ficou mais orgânico nos últimos anos, porque antes eu tinha um compromisso muito grande com respostas prontas. Eu queria chegar nas redes sociais sabendo o caminho. Isso não existe, né? Então, hoje em dia, eu vivo as experiências, desenvolvo os conhecimentos e quando eu chego na internet para comunicar eu tenho primeiras impressões, possibilidades e perguntas, que normalmente eu respondo junto com as pessoas que também se interessam em começar esses processos e conversas. Eu estou falando de questões como veganismos e sustentabilidade ou questões do tipo “Vegano usa ou não couro de brechó?”. E a gente tem alguns caminhos, questões, a gente abre essas perguntas e forma esses diálogos, que é uma coisa que eu não entendia a importância, quando eu comecei.
Você começou a estudar a aromaterapia, o ioga e o ayurveda e compartilhou muitos desses caminhos com o seu público. Como foi esse processo?
A gente às vezes é o nosso mais árduo crítico, a pessoa que mais critica e mais analisa o conteúdo, e eu mudo muito – talvez pelo meu ascendente em Gêmeos! Mas são questões da idade, da realidade, eu vim de uma realidade muito simples e muito cheia de privações financeiras e materiais, de repente eu conquisto uma independência financeira com a internet, então, os meus acessos mudaram, eu consegui viajar, fazer cursos, ter experiências que eu nunca nem sonhei em ter. Eu sonhava pouco, então, talvez eu tenha feito coisas básicas que são transformadoras e outras pessoas sonhariam e eu não. E isso mudou rápido os meus pontos de vista. Eu entendi que não teria compromisso nenhum com respostas prontas. Isso era o contrário de tudo o que eu estava vivendo.
O que eu apresento para a internet se eu não tenho nada pronto? Eu tenho muitas áreas de interesse, eu consigo me debruçar e elaborá-las profundamente, eu não posso ignorar isso. Foi no processo de mostrar esses desejos, experimentar novas coisas, experimentos, conhecimentos, de buscar novos pontos de vista, que eu entendi que tinha muita gente buscando isso também. Eu fui muito transformada por pessoas que me falaram coisas certas nas horas certas. E, às vezes, eu sinto que quero ser essa pessoa que pega na mão e mostra alguma coisa que a pessoa até então não ache legal, tenha outro ponto de vista ou ache desinteressante. Não que eu queira mostrar o novo para as pessoas, mas se eu tenho condições de viver para experimentar e conhecer, que legal poder oferecer isso para todo mundo! Eu comecei nesse processo de eu consigo acessar muitas coisas, de que forma eu consigo fazer uma ponte entre aqueles que, às vezes, não tem conhecimento nem acesso?
Como eu trabalho na internet, poder fornecer conhecimento e facilitar esses acessos a outros mundos e outras possibilidades para pessoas que viveram privações econômicas, financeiras, emocionais e imaginativas, para mim, foi a grande transformação e, quando eu entendi isso, ficou tão fácil buscar e viver os meus processos e comunicá-los online.
RELAÇÃO COM O PÚBLICO
Como resultado do seu trabalho, você criou uma comunidade muito engajada. Qual a importância disso, para você?
É muito doido como eu comecei a descobrir que nem todas as pessoas eram assim, que não era essa relação. Isso mudou quando o meu público começou a ficar mais jovem. As gerações mudaram. Se na época que eu fiz o Ensino Médio, em 2009, 2010 e 2011, falar sobre questões de gênero era “que mundo é esse?”, hoje o básico é discussão de gênero-racial, o básico é respeitar os meus pronomes, o básico é saber que a gente não é igual. E mudou muito rápido. Eu vi essa mudança acontecendo, com essa galera que está bebendo dessas fontes, principalmente digitais. Quando eu buscava conteúdo na internet era muito sobre beleza e moda e o conteúdo educativo era muito voltado para o vestibular. Era informação, mas não era pensamento crítico, reflexão. E quando você tem debates acontecendo na internet, eu vi a mudança. A galera da minha idade fala “gosto muito do seu trabalho, que bacana, para mim também foi assim”. Mas eu comecei a falar com gente nova, e a galera nova é muito enérgica. Eu fiquei muito chocada. São pessoas que cresceram enxergando produtores de conteúdo digitais como seus ídolos e isso é impensável para a minha geração, pelo menos. Para essa galera de 2000 para cima, os grandes ídolos são os músicos de k-pop e os influenciadores digitais.
Até essa relação com o meu público também tem mudado, porque eu sei que tem esses dois grupos, um que tem uma relação mais madura, que não cresceu com ídolos e grandes referências ou comunidades aglutinadas em grupos do Facebook, Instagram e YouTube. E um outro lado com uma galera jovem querendo aprender sobre Ciências Sociais, veganismo, moda de brechó, que é muito apaixonada. É uma relação de amizade, mas diferente com as faixas etárias que eu converso.
SEXUALIDADE E AFETIVIDADE
Você foi apresentadora da Parada do Orgulho LGBTQIAP+, e vai ser de novo esse ano! Também se tornou uma referência de ativismo para e sobre essa comunidade. Consegue compartilhar um pouco desse processo de autodescoberta com a gente?
Essa foi a comunidade que fui forçada a participar. E é interessante pensar isso, porque a questão da negritude veio muito naturalmente, porque é uma dor que eu luto e vivo desde que nasci. A questão da sexualidade veio muito tardia na minha vida, eu me entendi quando eu saí da minha cidade no Ensino Médio, aos 17 anos. Antes disso, eu vivia uma vida pentecostal, religiosa. Eu não pensava sobre a minha sexualidade, eu estava noiva aos 16 anos, inclusive.
Quando eu saí da minha cidade, vim para São Paulo, entrei numa faculdade de humanas. Eu comecei a entender o mundo, a refletir sobre a sociedade, a ler sobre questões raciais, me entender racialmente, a entender que as dores que eu sinto não são culpa minha, mas reflexo da sociedade violenta em que eu nasci… Ao mesmo tempo, comecei a entender a minha sexualidade, a dar nome para algumas questões. Foi tudo muito intenso, de uma vez.
Os processos ligados a negritude, à racialidade, já estavam mais amadurecidos. Por mais que não tivessem nome, eu já tinha experiência e vivência. A minha sexualidade não. Ela estava em plena descoberta e elaboração, cada dia era uma coisa, eu me entendia numa coisa, eu destravava uma memória que me confirmava que eu era isso ou aquilo, e eu entendi que só ia viver. Ia viver a minha sexualidade, os relacionamentos, inclusive com uma pessoa do mesmo gênero, e era sobre isso. Amor, viver e tirar esse peso das minhas costas.
E, nisso, tinha a sua crescente relação com a internet…
Quando eu falava na internet, as pessoas não entendiam. Elas falavam “O que você é?”. E a única resposta que eu tinha era: “eu não sou hétero”. É isso que eu sei sobre mim, por enquanto. Quando a gente se propõe a ser uma referência, existe uma necessidade de se colocar até quando você é uma das poucas pessoas que estão falando sobre. E eu pensei que eu precisava nomear isso, não porque é importante para mim, mas, para me posicionar politicamente, eu preciso saber direcionar as minhas dores, as minhas violências. Eu preciso entender outras comunidades. E foi aí que eu entendi, pesquisando – eu abri o Google, “como saber o que eu sou?”, “quais são as nomenclaturas ligadas às sexualidades existentes?”.
E qual foi o resultado disso?
Hoje eu me entendo uma pessoa pansexual, mas eu falo isso ao nível de abreviação, porque, na verdade, eu sou uma pessoa panromântica. Eu entendi o panromantismo como uma comunidade assexual. Olha a volta que eu dei para chegar no meu lugar!
O que isso significa, para você?
Eu entendi que é possível separar sexualidade de afetividade. E era isso que não colava na minha vida, era por isso que eu não conseguia nomear. O meu desejo sexual não anda junto com o meu desejo afetivo. Um pode ser independente do outro, pode existir sem o outro ou com o outro. Quando existe com o outro é o ideal, mas não é sempre que acontecia. Eu achava que eu era perdida nesse meio. E entender, na assexualidade, a separação de afetividade e sexualidade e depois entender na pansexualidade a possibilidade de me entender panromântica, foi quando eu pude respirar aliviada, “Agora eu posso falar para vocês o que eu sou”.
Foi um processo que eu expus com muita honestidade, sem falar com arrogância que sempre soube, que sempre fui… Eu passei por esse momento de questionamento, inclusive trazendo como foi difícil pra mim entender a minha sexualidade tardiamente. Você tem um processo de confusão e de ressignificação de todas as suas experiências afetivas e sexuais antes disso. E me encontrar dentro da comunidade LGBTQIAP+ foi fundamental, porque eu encontrei um lugar de pertencimento, mas também de desconforto, porque a gente não chega sozinho. Eu cheguei com a minha negritude, com as minhas poucas informações, o meu senso de “não entendo direito o que tá acontecendo aqui porque não vivi isso sempre”. A gente nunca é uma comunidade só, uma bandeira só. Conversar com todas as que eu converso por ser quem eu sou é aquela festa da família que você chama um monte de gente, que fala, mas não se fala…
Eu estou o tempo inteiro conciliando todas essas partes de mim que se encontram nessas várias comunidades e, no fim, dá certo!
RELACIONAMENTO AMOROSO
Você namora e mora com um homem trans. De que forma essa relação ajudou a moldar quem você é hoje?
A gente só se conhece quando é forçado a sair da nossa zona de conforto. Quando a gente é forçado a entender o quanto a gente quer, o quanto a gente ama, o quanto a gente precisa ou não, o quanto a gente odeia, detesta ou rejeita alguma coisa na vida. Isso não foi diferente com o meu relacionamento. A gente se conheceu antes do Jonas se compreender como uma pessoa trans, nós tivemos uma experiência afetiva pública que era sáfica. Na época, eu não era uma criadora de conteúdo, mas essa era uma questão que sempre vinha à tona.
Existiam duas questões, o meu amor, a minha paixão e o quanto aquele relacionamento me ajudava a entender mais sobre mim. Eu entendia muito de quem eu era. Eu compreendi de novo quem eu era quando eu comecei o relacionamento com o Jonas. E eu estava confortável em determinado momento, até isso ser mudado novamente. A compreensão da transexualidade do Jonas me tirou de um lugar confortável no relacionamento e no meu ego. As minhas dificuldades iniciais, por compreender pouco a questão trans, estavam muito mais ligadas ao o que isso vai dizer sobre mim.
Essa é uma questão que eu não percebia como era grave. Eu não percebia o quanto estava me atrapalhando a começar esse processo junto com ele, como suporte. Quando eu percebi que a dor e o maior desconforto eram sobre mim, o que aquilo diria sobre mim, e quando eu entendi que eu estava confortável naquela situação, eu comecei a olhar para o que mais importava naquele momento: um processo muito intenso, profundo e muito solitário que ele estava passando. Eu era a pessoa que poderia dar esse apoio, que poderia estar junto e não estava porque estava pensando nas minhas questões.
Entender que compartilhar não só o que era legal na nossa história, mas também os processos de apoio, de compreensão de si dentro de um relacionamento, de aproximação, de abandono de algumas questões também era importante para outras pessoas foi fundamental. Não só para a gente, porque a gente achou pessoas que passaram pelas mesmas coisas, mas para entender o que foi o que a gente viveu e como era mais normal do que imaginava.
E, hoje, o que é esse normal?
É normal você sempre pesar um pouco de você e um pouco dos dois quando você está num relacionamento, e mudanças acontecem. A gente só colocou essa experiência num lugar de normalidade e conseguiu falar com muita gente. Não intencionalmente. Pode ser que uma pessoa está se relacionando com outra que se compreende trans e a resposta realmente seja a separação, o conforto e a paz sejam encontrados no fim daquele ciclo e tudo bem.
Durante um tempo eu só pensava em como aquilo me afetava, depois eu só pensava em como aquilo era sobre ele e hoje, quando você pergunta, é como se eu tivesse que voltar a pensar desse primeiro lugar egoísta… É até desconfortável, como pensar sobre uma experiência tão importante para pessoa que eu amo ter me mudado? Não é sobre mim. Mas também foi! Porque eu também mudei.
No fim, relacionamento é sobre isso, se não for um ambiente de crescimento em conjunto é muito difícil de sustentar…
Qualquer tipo de relacionamento traz uma evolução. Eu tinha essa imagem visual de que estava cada um do lado de uma ponte, eu e o Jonas, e em vários momentos eu atravessei a ponte sozinha e, em outros, ele atravessou sozinho para o meu lado. Era exaustivo, porque é sempre a gente abandonando tudo o que tem do nosso lado da margem para andar quilômetros e quilômetros para chegar no outro. Esses processos de ida e vinda, quando são unilaterais, destroem qualquer relacionamento. O ponto ideal da nossa construção é sempre esse lugar do meio: você se encontra na ponte, e é lógico que é mais desconfortável para todo mundo, tem vento, balança, mas vai ser menos cansativo para os dois lados, você vai estar mais próximo para voltar pras suas margens e se reencontrar naquele meio. E, às vezes, naquele meio você cria outra estrutura. Todo relacionamento, quando tem esse equilíbrio, vai para esse lugar: não é só você e não é só o outro, é um lugar novo que vocês criam juntos.
COMUNICAÇÃO COM AMOR
É muito interessante perceber que você encontrou uma forma muito amorosa e didática de falar sobre assuntos complexos e até dolorosos. Como foi isso pra você?
A gente só sabe o que é quando sabe o que não é. A gente só sabe o que quer quando sabe o que não quer. Para encontrar esse meu lugar de mais compreensão e calma, eu já estive num lugar de afetação e raiva. Eu já vivi o outro, entendi que não mobilizava o outro da forma como eu gostava, que aquele outro me afetava psicologicamente, emocionalmente e financeiramente de uma maneira que eu não gostava, e negar isso para achar outro lugar foi bem mais fácil.
Eu experimentei inicialmente a raiva, a revolta, o desespero, uma comunicação afetada pelas questões que eu falava – eu realmente ligava a câmera ou o celular quando estava com raiva, e era maravilhoso porque eu conseguia falar e eu sabia que eu afetava as pessoas. De repente tinham milhares de pessoas aglutinadas ao meu redor retroalimentando essa raiva e é muito legal num primeiro momento, porque você pensa “A gente tá acordando junto”.
E o que mudou?
Eu sempre uso essa analogia: a gente é como um chuveiro velho com uma fiação antiga. Você toma um banho muito quente de uma vez, o fio superaquece e a resistência cai. E você pode continuar assim, até o fio queimar e a energia da casa cair. Vai demorar muito mais para você tomar um banho morno e gostoso, e você talvez não queria isso, talvez você prefira queimar o chuveiro. Eu tive – e não julgo – a minha fase de queimar o chuveiro. Ela foi necessária para eu tirar o que estava sufocado dentro de mim, a violência racial, as questões ligadas a minha sexualidade… Eu tinha muita indignação que não sabia direcionar. Quando eu quis parar as pessoas não queriam mais, elas queriam se retroalimentar da raiva, “eu preciso que você odeie para que eu possa odiar também, porque se você não odiar, eu te odeio”. Eu vi isso bater em mim.
Foi um lugar que eu dei o que eu recebi. E eu vi que não era sustentável. Então, vamos trocar o chuveiro, arrumar esses fios, e tomar banhos mornos, mas consistentes. Quer dizer que de vez em quando eu não vou dar uma torrada na resistência? Claro que dou, somos humanos, a gente está com raiva, se afeta… Mas hoje em dia eu crio qualquer coisa de um lugar de compreensão e respeito aos meus limites. Eu estou preparada para falar sobre isso? Eu vou falar porque eu quero ou porque eu estou sentindo uma pressão para falar sobre isso? Eu odeio isso porque eu odeio muito isso ou porque eu preciso odiar porque as pessoas querem que eu odeie?
AUTOCUIDADO E ESPIRITUALIDADE
Foi aí que entrou a questão do autocuidado para você?
Eu quero me cuidar e eu quero que as pessoas entendam a importância de se cuidar. Quando eu entendi que para as pessoas, isso era antagônico, fiquei muito triste e assustada. Esse lugar que eu estou hoje compreende esses outros lugares de raiva e afetação, não me julgo superior ou mais legal, porque eu acho que, às vezes, um discurso mais calmo e passivo não chega. Às vezes você precisa dar umas porradas e falar mais grosso, mas eu sinto que tenho estrutura para continuar falando. Se eu tivesse continuado como eu estava antes, eu já teria desistido de tudo o que eu faço há muito mais tempo. Porque, no fim do dia, a gente tem objetivos sociais, a gente quer transformar a nossa realidade, mas somos seres humanos com psiques completamente traumatizadas e perdidas num mar de sonhos e frustrações pessoais. Quem vai dar conta disso? Se não for a gente, não vai ter como.
Você tem um histórico bastante ligado com a religião, como é a sua vivência espiritual hoje?
Essa pergunta é maravilhosa, porque metade dos meus seguidores quer me tirar do armário como bruxa! Eu saí de uma igreja pentecostal, rígida, em que eu tinha como objetivo ser missionária, e tenho uma ruptura muito grande com a questão da minha sexualidade, quando eu entendi que eu não achei esse espaço seguro na minha igreja. Eu, então, começo uma faculdade de Ciências Sociais com várias matérias para odiar todas as religiões e provar que a religião era uma grande histeria coletiva. Eu entrei achando que ia odiar e destruir todas as religiões e saí acreditando em todas elas. Saí entendendo que as pessoas dão diferentes nomes para diferentes práticas e essas práticas podem ou não estar ligadas ao que eu chamo de causalidade ou destino. Alguém vai chamar de bruxaria, alguém vai chamar de trabalho espiritual, o que você chama de Deus alguém vai chamar de esforço. A gente tem nomes e formas de enxergar coisas que existem na vida de todo mundo, o medo, a insegurança, coincidências, bruxarias e isso me fez ir para um lugar de total ecumenismo. Eu pesquisei sobre budismo, sobre neopaganismo, sobre bruxaria natural, sobre umbanda – principalmente, sobre umbanda e candomblé -, e eu comecei a beber de tudo. No fim, não me encontrei em lugar nenhum e me encontrei em todos.
Hoje, eu sou eclética para religião! Eu sou uma pessoa que viveu muito tempo a espiritualidade, odiou muito tempo a espiritualidade e hoje vive uma espiritualidade plural. Se alguém quiser me dar um passe eu aceito, se alguém me chamar para uma mesa branca, eu estou indo, se alguém falar “vamos fazer um ritual Wicca de Beltane”, estou indo também, e consigo me compreender e me sentir bem. No fim eu precisava da espiritualidade, e eu consigo alimentar isso individualmente, nas minhas práticas diárias, em que eu ressignifiquei a ritualização, e, ao mesmo tempo, eu estou sempre aberta.
SOBRE O ENSAIO
Realização: Larissa Serpa
Diretora de arte: Kareen Sayuri
Fotografia: Ju Frug. Assistência de Stephano Alquati Pasqualini
Beleza: Vale Saig com produtos Biossance e KVD Beauty. Assistência de Beatriz Helenna
Moda: Barbara Milena do Nascimento
Nátaly veste: Brechó Vó Judith