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Treino 3D - Corpo, Mente e Espírito, com Samorai

Bacharel em esporte, Samorai (@samorai3d) é criador do método de treinamento 3dimensional para reabilitação, prevenção e tratamento de lesões e performance. Aqui, auxilia praticantes e treinadores na busca por harmonia.
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A linguagem da dor

Por Samorai
18 Maio 2021, 20h19
Mulher com dor nos joelhos
 (blyjak/Thinkstock/Getty Images)
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Todo dia é um dia comum, até o momento em que não é mais. Com essa frase maravilhosa Bernard Cornwell começa o sexto livro das crônicas saxônicas. Nesta coleção é retratada a vida de Uhtred Ragnarson, um saxão criado por vikings, mas que mesmo contra sua vontade e por diversas tramas do destino, ou das fiandeiras, como ele diz, luta contra os nórdicos. Por muitas vezes se vê em batalhas nas quais a chance de morrer é enorme e a sobrevivência depende de técnica, estratégia, organização, lealdade, sorte e muita, muita coragem.

Comecei por aqui, porque amei tanto essa frase que quis criar um jeito de usá-la. Mas, na verdade, quero usá-la de uma outra forma. Todo dia é um dia sem dor, até o momento em que não é mais. Eu trabalho com reabilitação e todo dia recebo um cliente contando sua história de dor. E normalmente esta aparece do nada, sem muito aviso prévio. As pessoas costumam fazer o que sempre fizeram, porém em determinado momento, começou a doer. E muitas vezes não parou mais. A partir daí, a vida muda. Infindáveis tratamentos, gelo, calor, anti-inflamatórios passam a fazer parte da sua história. Às vezes também vem a necessidade de parar as atividades porque a dor não mais as permite.

Com isso, se inicia um ciclo que chamo de espiral negativa. Sentimos dor, paramos de nos mover, isso só gera mais desadaptação, que gera mais dor, que fará com que nos movimentemos menos. Paralelo a isso, vem a depressão, porque tivemos que parar a atividade que gostamos de fazer, que nos descarrega dos estresses do dia a dia, que nos enche de energia. E cria um problema maior ainda. O medo da dor e do movimento ou, em linguagem mais rebuscada, algofobia e cinesiofobia.

Não sei quantas vezes me deparei com esse cenário na minha vida profissional, mas posso garantir que foram centenas. Pior que as dores e as lesões em si são as sequelas emocionais que vêm junto. Muitas delas criadas ou reforçadas por profissionais que não se atentam a isso. E não por culpa deles, mas porque aprenderam assim. O modelo tradicional na saúde muitas vezes foca apenas em protocolos, lesões, doenças, síndromes e esquece do ser humano.

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É muito comum os clientes chegarem sabendo nomes técnicos, terem uma quantidade de informação excessiva sobre sua lesão, que também tem nome, e não terem nada de esperança. Eles já vêm com uma certeza do que não podem fazer e nenhuma ideia do que podem ou qual caminho trilhar para melhorarem. Procuram o especialista em reabilitação, mas não acreditam que isso possa ser viável. E a cada movimento, cada ação, cada terapia, o foco é único. A dor. Toda sua atenção está na dor. E quem procura dor, certamente vai encontrá-la. Ou criá-la. Chamo isso de holofote na dor.

Entre muitas coisas que são necessárias para um processo de reabilitação, a principal delas é acreditar que isso seja possível. Não à toa, em uma das paredes do meu Instituto está uma frase de Henry Ford: “se você acha que pode ou que não pode, de toda forma você está certo”. A ideia desta frase é começar um processo de volta daquela espiral. A espiral positiva. Todo processo de reabilitação é um processo de autonomia, então ao invés de olharmos o que não conseguimos fazer, podemos olhar para o que conseguimos e como podemos melhorar um pouquinho a cada dia, para gerar também um pouquinho mais de autonomia. Reforçar cada pequeno ganho. Comemorar. Inspirar. O holofote do sucesso e não da dor. Criar parâmetros de melhorar. Saber qual o ponto de partida e qual o de chegada. Qual o próximo passo. E sabe quem é meu maior aliado nesse processo? A dor. É um paradoxo, mas a dor não é exatamente a vilã. Ela é a nossa melhor amiga no processo de reabilitação.

Isso pode parecer muito estranho, mas só se dá porque vivemos em um mundo que abomina a dor. Faz de tudo para fugir da dor. Ao menor sinal dela, já tomamos um analgésico. Seja dor de qualquer natureza. Buscamos nos anestesiar das nossas dores físicas, emocionais e espirituais. Talvez por isso, toda semana uma farmácia nova abre aqui por perto. Porém, nada poderia ser pior para um processo de reabilitação que a ausência da dor. Porque sem ela seria como tatear no escuro, sem nenhuma luz. E sem nenhuma referência.

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Serei mais claro. Quando vou reabilitar alguém, tenho que melhorar essa pessoa a cada dia. Porém, pessoas são seres singulares e o que funciona para uma não funciona para outra. Elas tampouco vêm com manual de instruções. Para ajudar, tem muita coisa relacionada à função humana que desconhecemos. Na verdade, a maioria. Então, dentro desse cenário, eu tenho um ser humano singular, infinitas possibilidades, um conhecimento bem limitado da função humana e nenhum guia. Como caminhar? Como criar um processo de reabilitação? Ouvindo a dor. Sim, ao invés de vilã a dor é uma comunicação.

Nosso corpo é dotado de sensores e sentidos muito mais complexos do que podemos entender. E nossas sensações são comunicações que nos guiam através deste campo infinito. A dor tem a função de nos dizer que alguma coisa está errada. E ela também tem graduação. Ela diz se alguma coisa está muito ou pouco errada de acordo com a intensidade da dor. Por exemplo, se coloco minha mão em uma chapa muito quente, dói imediatamente e de maneira muito intensa. Essa é uma forma do corpo te dizer: tire a mão daí imediatamente ou as consequências serão irreversíveis. O corpo não tem como mandar uma mensagem no seu celular solicitando que você tire a mão daí. Então ele usa a dor. Se você colocasse a mão na chapa fria, não aconteceria nada e não teria dor. Agora se você está na areia da praia e esta está quente, até te incomoda, mas não a ponto de você ter de sair correndo, você até sente uma dorzinha, mas como não vai te causar nenhum grande estrago, a dor não é tão forte.

Na reabilitação funciona igual. Se você me diz que ao agachar você sente dor no joelho, isso é apenas um dado. Uma informação do seu corpo de que desta forma que você agacha, algum estresse maior está chegando ao seu joelho. Não precisa criar um pânico ou se entupir de remédio. Apenas escute e converse com seu corpo. Varie um pouquinho a forma como você agacha e ele te responderá. E essa resposta só poderá ser de três formas. Melhorou, piorou ou ficou igual. Caso tenha piorado, ele está te dizendo que esta variação exige ainda mais do seu joelho. Tente outra coisa. Mas ainda assim é uma informação relevante, porque se piorou, talvez o caminho seja o oposto disso. Se ficou igual, que esta variável não influencia e se melhorou, ele te indica um caminho. Essa é uma estratégia vencedora e, ao menos por um tempo, ela promove resultados. Sendo assim, ao treinar dentro desta estratégia você gera recursos que te ajudarão a desempenhar melhor o agachamento original que causava dor.

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Vou colocar em exemplos práticos. Ao agachar você sente dor no joelho. A partir da forma como você agachou podemos criar uma pequena variação e fazer uma pergunta. E se você agachar com as pernas um pouco mais afastadas? A partir desta pergunta, apenas três respostas podem acontecer. Melhora, piora ou fica igual. Se piora sabemos que o caminho não passa por afastar as pernas. Se fica igual, que esse afastamento não interfere no desempenho. E se melhora? Aqui temos dois casos. Melhora, mas ainda dói, ou melhora e não tem dor. No primeiro caso talvez ainda precisamos buscar algum pequeno ajuste, mas dentro desta estratégia, porque ela já gerou ganho. Então poderíamos pedir para rodar os pés um pouco para fora, a partir das pernas afastadas, e novamente teremos as mesmas respostas: melhorou, piorou ou ficou igual. A partir desta resposta ajustaríamos até achar uma que não tem dor. E quando a encontramos, treinamos nela, visto que essa posição é muito parecida com a que gerava dor, com pequenas variações, e a ausência de dor nos diz que esse é o caminho. Sempre que treinamos, ganhamos recurso e performance. E quanto mais recursos ganhamos em uma posição muito próxima da que doía, mais transferíveis esses recursos são para posição de dor e é bem provável que ao voltar os pés para posição inicial, aquele agachamento que gerava dor no joelho não cause mais dor.

Esse é o modo de se pensar quando temos a dor como guia. Agora imagine se eu usasse um analgésico? Eu perderia essa referência e, por não sentir dor, poderia estar me movimentando de uma forma que agravasse esse cenário. Nesse caso, usar analgésico seria como se meu carro estivesse fazendo um barulho no motor e eu aumentasse o volume do rádio. Muito provavelmente isso mudaria minha percepção do ruído, mas nem de longe resolveria o problema, aliás, agravaria, porque o que a dor me diz é que não devo fazer esse movimento dessa forma, mas se eu a silenciei, não escutarei esse conselho.

Outra estratégia seria não agachar, afinal se ao agachar sinto dor, então não vou agachar. Aqui existem dois problemas, alguns movimentos não podemos deixar de fazer. Agachar é um deles. E mesmo que pudesse, o corpo funciona sob a lei do uso e desuso. Se eu uso, ele se aperfeiçoa e melhora, mas se eu paro de usar, ele regride e perde recursos. Quem já treinou, já percebeu isso. Fez um treino forte por dois anos e dois meses que ficou parado andou muito para trás. E isso não serve só para movimentos. Pergunte a algum aposentado que trabalhou com a mesma coisa por cinquenta anos, porém está há cinco anos parado, se ele conseguiria trabalhar hoje do mesmo jeito que trabalhava. A resposta é que não. Quem já morou fora e aprendeu outra língua, se não usar mais, não falará com a mesma desenvoltura no futuro. Isso serve para tudo. Somos orgânicos e dinâmicos. Então, evitar agachar não é uma solução. Porque a busca nunca foi por parar a dor, mas não ter dor ao agachar, e isso passa por agachar. Logo, tenho que gerar recursos para o corpo conseguir isso e não treinar agachamento não possibilitará isso.

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Voltando aos saxões, para vencer os temidos vikings não poderiam apenas se afastar. Eles precisavam ir à luta no campo de batalha, onde a “dor” acontecia, e criar uma estratégia para que, passo a passo, ela fosse suprimida, sem que para isso eles precisassem fugir, correr ou ignorar essa dor. Problemas se resolvem olhando para frente e para guiá-los contavam com Uhtred. Na reabilitação nosso guia é outro. É a dor, que ao passar de vilã a heroína, nos guiará à vitória, que às vezes perseguimos por anos, simplesmente por não ouvirmos essa dor. Há um ditado alemão que diz que quem não sabe ouvir tem que sentir. Essa é a mais perfeita tradução de dor. Algo que você sente para poder ouvir. Ouvir você mesmo.

Essa coluna de hoje é em homenagem a todos que sofrem com guerras, massacres, invasões, extermínios e toda natureza de manifestação de ódio. Essas dores são vozes que gritam muito alto, mas estamos dopados de tanto analgésico em nossas bolhas que somos incapazes de ouvir, e muitas vezes, sem nos darmos conta, financiamos esse mundo e infringimos tanta dor a tanta gente.

Forte abraço,

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Samorai

 

 

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