Mitos do treinamento – Parte 2
Normalmente, leio três livros ao mesmo tempo. Porém, quando algum deles me pega de jeito, eu passo a ler apenas um. Até tento me enganar, levo três livros para viajar, mas nem toco nos outros dois. Fico obstinado pelo livro que quero devorá-lo até que ele vai chegando ao finalzinho e começo a ler bem devagarinho para que ele não acabe logo. E vou me despedindo desse enredo, dessa história, desses personagens durante alguns dias, até que tomo coragem e finalizo, sabendo que algum dia voltarei a revê-los.
Alguns desses livros maravilhosos são trilogias, como a crucificação encarnada do genial Henry Miller, o que faz com que a experiência se prolongue e até vicie. Após uma trilogia assim vem a crise de abstinência. Meu livro da vez não é apenas um ou mais, mas são 12. São as crônicas saxônicas, indicadas pelo meu grande amigo Jonas Koch, excelente personal de Novo Hamburgo e meu parceiro nesse mundo 3D.
Desde janeiro não leio outra coisa. Essa obra prima do britânico Bernard Cornwell narra o período das invasões dos vikings na Inglaterra sob o reinado de Alfredo, o grande, onde por muito pouco o mundo como conhecemos hoje não existiria. A parte mais interessante dessa história, para mim, além de todo o enredo, é mostrar a construção de um país, a partir da tragédia. Talvez isso explique muito a importância da Inglaterra até hoje.
Mas, uma coisa chamou muito minha atenção. As histórias normalmente são escritas pelos vencedores, mas no caso das invasões vikings, eles não escreviam nada, nem quando ganhavam e nem quando perdiam. Daí a existência de vários mitos. Quer ver um exemplo? Quando você pensa em um viking já vem à sua cabeça um guerreiro bárbaro, sujo e com um capacete com formato de chifres. Pois é, nada disso corresponde à verdade, principalmente o capacete. Ele foi retratado assim pelos padres para dar uma ideia de que o inimigo é o diabo, e tudo que for feito contra o diabo já está justificado por natureza.
A verdade é que ninguém lutaria com um capacete que não protege e ainda com uma manopla pela qual o inimigo pode te controlar. Mas são mitos. E eles passam por gerações, e não importa se são verdadeiros ou não. Nesse caso, esses mitos podem desinformar, mas não causam maiores problemas. Já os mitos do movimento, não. Como vimos na minha coluna da semana retrasada (se você não leu, pode acessar por aqui), muitas vezes eles são as causas de muitas dores. Como essa coluna teve bastante repercussão, vou transformá-la em uma trilogia para que você possa saboreá-la como faço com meus livros. No segundo capítulo da nossa série, hoje vamos abordar os mitos do treinamento.
Mito do alongamento
É muito comum escutarmos coisas como: alongamento previne lesão. Ou, é importante alongar antes e depois do treino, entre outras coisas ligadas a esse tema, mas que não passam de mitos. Sobre o fato de alongamento prevenir lesão, não há um único trabalho científico que mostre qualquer evidência de que isso seja verdadeiro. Se você pegar dois grupos grandes e realizar o mesmo treino com ambos os grupos, sendo que um alonga antes, não mostrará nenhuma mudança significativa nos índices de lesões. Eu mesmo, na minha prática esportiva e como professor, não passo alongamento estático para nenhum cliente, e meu foco é reabilitação.
Entretanto, existem algumas comprovações científicas relacionadas ao alongamento. Uma delas é que ele pode diminuir a performance atlética quando realizado antes de uma atividade. Em outras palavras, você pode perder potência de um arremesso ou chute se alongar antes. Isso se daria porque a potência acontece em função do estiramento e encurtamento de uma musculatura com força e velocidade. Quando alongamos a musculatura antes, ela pode ficar menos responsiva a esse ciclo de estiramento e encurtamento e, com isso, ficar mais lenta nessa resposta.
Então podemos concluir que alongar antes, além de não prevenir a lesão, pode derrubar sua performance. Não é exatamente isso que você busca quando vai se exercitar, né? Então para que serve? A resposta lógica seria para ganhar mobilidade. Ainda assim acho altamente questionável. Possivelmente, você conhece alguém que não consegue tocar a mão no chão com os joelhos estendidos. Talvez seja o seu caso. Pergunte a essa pessoa se ela nunca tentou alongar. Se isso funcionasse, ela teria conseguido. A questão é que ninguém continua fazendo algo que só dói e não produz resultado. E porque não funciona? Infinitas possibilidades podem limitar o movimento de uma pessoa a ponto dela não conseguir tocar o chão.
Do ponto de vista proprioceptivo, o alongamento é muito pobre e não é tridimensional. Já a nossa movimentação corporal é muito rica proprioceptivamente falando e sempre tridimensional. Então temos um descompasso entre o problema e a técnica (alongamento), que não consegue trabalhar essas limitações por ser muito limitada. Aqui quero frisar dois pontos para não ser mal interpretado. 1. Toda vez que eu falar de alongamento, estou me referindo ao alongamento estático e tradicional, aquele que todo mundo conhece e faz. 2. Quando falo que alongamento não previne lesão, não estou falando de aquecimento. Esse, sim, previne lesão e é comprovado pela ciência.
Dado tudo isso que você leu acima, é muito lógico que você me pergunte para que o alongamento serve, então? E te respondo dizendo: entende agora o porquê não uso na minha academia?
Mito do joelho não poder passar a frente dos pés
Um grande mito na academia relacionado ao agachamento é que ao realizar esse movimento, os joelhos não podem passar a ponta dos pés. Muitas teorias se criaram em cima disso, mas do ponto de vista funcional isso não faz nenhum sentido. A base dessas teorias é que o corpo é frágil e o agachamento um movimento perigoso. Entretanto, agachar é um movimento fundamental e todos os seres humanos da Terra o fazem. E para agachar completo, não só é recomendado como necessário que os joelhos passem a linha dos pés ou, simplesmente, você não conseguirá realizar um agachamento completo sem cair.
Isso se dá porque para se manter equilibrado, seu centro de gravidade precisa estar dentro da base de apoio, que é a área entre seus pés. À medida que vou agachando, o meu centro de gravidade vai sendo deslocado para trás, até que em determinado momento, se meu joelho não passa a linha dos pés, vou cair de costas. Quando meu joelho cruza a linha dos pés, ele traz o centro de gravidade para frente e o equilibra dentro da base de apoio, possibilitando descer até o chão. E isso não provoca um estresse com o qual o joelho não possa lidar. E se seu joelho doer, precisamos investigar o porquê, mas uma coisa você pode ter certeza, não tem nada a ver com o fato dele passar a ponta dos pés.
O mito do impacto
Esse aqui dá para escrever por horas. Muita gente acha que não pode correr porque corrida tem muito impacto. Ou deixa de fazer outras atividades porque elas têm impacto. Inclusive, o nome já gera um certo desconforto, como se impacto, propriamente dito, fosse negativo por natureza. A verdade é que se não houvesse impacto, nós não nos moveríamos. Toda nossa lógica de movimentação neste universo segue as leis da física. Não criamos movimento do zero, nós utilizamos energias que estão disponíveis para realizar os movimentos.
Uma das mais essenciais é a lei da ação e reação. Ao pisarmos no chão, ele devolve uma energia de mesma intensidade e de sentido oposto, que usaremos para saltar ou correr, por exemplo. Sem essa energia – que causará um impacto – não poderíamos executar tais tarefas. Agora, obviamente, nosso corpo tem uma capacidade limitada de lidar com esse impacto. Se eu pular de cima de um prédio, não vou conseguir absorver essa energia e, certamente, será a última coisa que fiz nesse planeta. Então, se tem um limite, precisamos entender a qual impacto somos submetidos em determinadas tarefas para saber se são grandes ou não.
Uma pessoa quando caminha aplica uma força no chão, em média de 1,2 a 1,5 vezes o peso corporal em cada passo. Quando ela corre, pode variar de 2,5 até 8 vezes dependendo de velocidade e técnica de corrida. Aparentemente, isso parece muito, o que tornaria uma corrida algo relativamente perigoso. Porém, já foi medido em laboratório (o que sugere que em uma competição esse valor seja maior) um salto mortal com 28 vezes o peso corporal. Se um corpo aguenta esse valor sem se quebrar, uma corrida não é nada. Mas, claro, se você ao correr sente dores, o problema não está no impacto e, sim, em como você lida com ele. Logo, ao invés de parar de correr, a melhorar estratégia seria estudar seu corpo através de uma avaliação 3Dimensional e entender o porquê ele dói ao correr e não parar de correr. Porque se pararmos de fazer os movimentos para evitar o impacto, temos um outro problema relacionado à ausência deste. A desmineralização óssea. Ou seja, o osso, por não sentir impacto, fica mais frágil e pode gerar uma osteoporose. Logo, ao invés de ruim, o impacto é nosso aliado para uma vida saudável.
O mito do fortalecimento
Quase todo dia alguém me procura para um processo de reabilitação e diz que precisa de um fortalecimento. E quase todo dia, após avaliação, constato que ele precisa de qualquer coisa, menos isso. Eu explico melhor. Uma pessoa sente dor ao caminhar. Ela acredita que seja por falta de fortalecimento. Mas, quanto de força precisamos fazer para caminhar? Podemos fazer um teste. Incremente algo nessa caminhada e teste a pessoa para ver se ela consegue caminhar. Peça para carregar 10kg em cada braço ou caminhar com alguma resistência, como um elástico. Certamente, ela conseguirá, o que mostra que ela tem força suficiente para a tarefa, porque você dificultou bastante e ainda assim ela respondeu, logo fortalecer não vai gerar melhora.
É diferente de pessoas muito idosas ou que passaram muito tempo acamadas e perderam força. O trabalho a ser feito, então, não é fortalecer, mas entender por que ela sente dor ao caminhar. Vamos imaginar que seja porque ela pisa torto e, com isso, o joelho recebe carga em um ângulo muito difícil para ele lidar com ela. Fortalecer não vai mudar isso. Pode até fazer você resistir a esse problema por mais tempo, mas o tempo sempre vence e uma hora vai doer novamente.
Um outro problema poderia ser o controle das forças que atuam nesse movimento. Se o problema for esse, significa que não consigo lidar bem com as cargas. Um aumento de carga dado pelo aumento da força só pioraria esse problema. Logo, o trabalho a ser realizado aqui não é fortalecer, mas controlar melhor essas cargas, e a dor vai embora. Dor pode ter infinitas causas e reduzir tudo a fortalecer não só é limitante como não produz os efeitos necessários. Se fosse assim, ninguém mais teria dor. Basta fortalecer que ela vai embora e quem trabalha com reabilitação já fez isso e não teve resultados.
Mas por que esse mito continua tão forte? Uma vez, ouvindo o maravilhoso podcast Jornada da Calma, da também maravilhosa e amiga Helena Galante, em uma entrevista com a incrível personal Chel Anderaus, ela falou uma frase que nunca mais esqueci e adotei no meu discurso. Toda vez que falta algo no corpo, ele substitui por força. Parece que faz sentido para esse contexto aqui também. Toda vez que não conseguimos explicar uma dor, substituímos por fortalecimento.
Semana que vem, o capítulo final da nossa série sobre mitos.
Forte abraço, Samorai