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Vida inteira: como é conviver com o câncer

No mês de Outubro Rosa, conversamos com Ana Michelle, que convive com o câncer há 10 anos e oferece uma nova forma de lidar com a vida

Por Marcela De Mingo
Atualizado em 8 Maio 2024, 09h45 - Publicado em 6 out 2021, 13h00
câncer de mama
 (Oscar Wong/Getty Images)
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A jornalista Ana Michelle Soares recebeu, em 2011, um diagnóstico que nenhuma mulher gostaria de receber: câncer de mama. Meio que “por acaso”, por meio do toque, ela notou um caroço no seio que logo foi investigar, sem esperar muito do assunto. Na família, nunca houve nenhum diagnóstico de câncer, nunca.

No mundo, já se falava muito sobre a doença, mas não a ponto de ter tanta visibilidade como hoje. “Nesse primeiro impacto, a gente fica muito carente de informação – ainda mais para mim, nova, parecia um acaso da natureza”, explica ela, diagnosticada aos 28 anos.

Hoje, AnaMi, como gosta de ser chamada, é uma inspiração em muitos sentidos. Paciente metastática da doença, se tornou referência não só quando o assunto são os cuidados paliativos, mas também em qualidade de vida. Afinal, quem foi que disse que a vida acaba ao receber um diagnóstico de câncer? 

Câncer de Mama Ana Michelle Soares Paliativa
Ana Michelle (@paliativas) (Instagram/Divulgação)

A busca pela vida diante do diagnóstico

Naquela época, Ana Michelle teve a sorte de já viver em um mundo mais conectado, e encontrou na internet um grupo de mulheres que escreviam sobre as suas experiências com o câncer em blogs. “Foi onde eu encontrei o meu primeiro espaço de pertencimento. Você se identifica com aquilo e tem coragem de falar com quem está vivendo a mesma experiência”, continua ela.

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Seguindo os tratamentos conforme o prescrito e buscando ao máximo o que os médicos idealizavam como “cura”, AnaMi encontrou um ambiente frio e normalizado: o sofrimento das pacientes com câncer era visto como algo “normal”. Sentir dor durante o tratamento “é normal”, e a própria doença era reduzida a uma imagem em raio-X do seu seio com o tumor a ser reduzido. E, fosse dentro ou fora do hospital, as conversas em torno do diagnóstico e suas vivências como uma paciente de câncer acabavam sempre da mesma maneira. 

“É como se você passasse por essa fase quase que anestesiada. Ninguém oferece outro discurso que não seja ‘a heroína’, ‘guerreira’, e muitos ainda querem oferecer um conselho maravilhoso, dizem você está doente porque você quer, que você tem que entregar a sua vida na sua egrégora sagrada, tomar o chá de não sei o quê… Cria-se uma coisa de ‘você só não está curada porque não quer'”, explica ela.  

Isso tudo virou uma chave na mente de AnaMi, que hoje em dia lida rotineiramente com o sofrimento humano e as dificuldades das pessoas em lidarem com ele. A ideia de que o sofrimento do paciente de câncer “é normal” foi substituído por outra ideia: a de buscar uma visão humanizada e íntegra dessas pessoas. “A gente vai tratar você, mas você vai ter que caminhar por outras curas, você vai ter que estar bem mentalmente, espiritualmente, fisicamente… Ter um encontro com uma possibilidade de finitude é difícil. Tem muita coisa que passa na cabeça dessa mulher, porque dá de encontro com o seu próprio medo. Essa é a construção de humanidade que a gente está fazendo”. 

O caminho da… remissão 

A vitória do fim de um tratamento e de uma possível “cura” da doença é mais que válida, no entanto, é motivo de atenção redobrada. AnaMi sabe exatamente o porquê disso: três anos depois de, teoricamente, ter vencido o câncer, recebeu o diagnóstico da metástase. Ou seja, a doença tinha se espalhado. E esse, infelizmente, é um quadro comum.

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De acordo com uma pesquisa recente do laboratório Pfizer, 30% dos casos de câncer de mama evoluem para metástases. O número, na verdade, não é para assustar, mas para alertar para a necessidade de compromisso com os protocolos de remissão, muitas vezes deixados de lado pela ilusão da cura imediata. 

“O paciente metastático entra em tratamento paliativo – ele deixa de ter a função curativa”, explica AnaMi, que comanda a Casa Paliativa, um espaço de convivência (presencial e online) dedicado a pacientes com doenças graves que podem se beneficiar dos cuidados paliativos. “O paliativo vem de suporte durante toda a sua vida, a gente sabendo que pode ser ou não que essa doença te leve ao fim da vida”. 

De acordo com a Organização Mundial da Saúde, os cuidados paliativos dizem respeito a “uma abordagem que aprimora a qualidade de vida de pacientes e seus familiares frente a problemas associados com doenças que levam a risco de vida, através da prevenção, avaliação e tratamento da dor e outros problemas físicos, psicossociais e espirituais”. Entra aí o que AnaMi chama de “equipe multi”, um time de profissionais que vão não só auxiliar essa paciente no tratamento medicamentoso e acompanhamento da doença em si, mas vão colaborar para melhora de qualidade de vida

Ethnic young adult female cancer patient sipping tea
(FatCamera/Getty Images)

“Essa coisa de normalizar o sofrimento é algo que precisa sumir da medicina, porque todo o sofrimento é urgente”, continua ela. “Quando a gente consegue manejar a dor, a gente entra em outras questões. O que está doendo de verdade? ‘Pensar que eu não vou ver os meus filhos crescerem’. A gente tem que acolher. Você está vendo os seus filhos agora, então, aproveite agora. São recursos para trazer essas pessoas para esse presente. É uma cilada querer tirar a gente dessa situação que é imutável, mas que tipo de estratégias de esperança eu posso criar para viver mesmo dentro disso que é imutável?”. 

É uma grande reversão, diz ela, tornar os “dias inúteis”, à espera do inevitável, em dias úteis. “Eu vivo uma doença muito grave, faço quimioterapia todos os dias e a qualquer momento pode ser que algo aconteça. Mas a finitude é uma casa que existe dentro de todos nós. Você lutar contra o fato que a vida acaba não vai fazer ela ser maior”. 

A visão do outro lado 

Olhar a visão médica é igualmente importante ao se falar de câncer de mama. Segundo o Dr. Luciano Ricardo Curuci de Souza, ginecologista e acupunturista com área de atuação em dor, é importante considerar as questões físicas quando se fala em qualidade de vida de um paciente da doença. 

“Dos pacientes com câncer avançado, cerca de 90% apresentam dor moderada ou intensa, estando sujeitos a cada vez mais uso de medicações analgésicas, de opioides fortes e até procedimentos invasivos como bloqueios anestésicos”, explica ele.

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Esses pacientes tendem a apresentar também, de acordo com ele, sintomas de insônia, fadiga e distúrbios emocionais, o que pode, inclusive, piorar a dor. Por isso, ele acredita na acupuntura como uma maneira de tratar mais de uma questão por vez e, como consequência, melhorar a qualidade de vida de seus pacientes. “A acupuntura tem por princípios tratar a dor especificamente por ação analgésica e anti-inflamatória, mas também atua como tratamento para insônia e leva a um conforto do paciente por poder atuar nas emoções de cada indivíduo, sendo esta ação ao nível de Sistema Nervoso Central”, explica. “Ao melhorar os sintomas dolorosos e as reações adversas do tratamento quimioterápico e radioterápico, proporcionamos e garantimos uma qualidade de vida melhor aos pacientes oncológicos.”

Para ele, quando o paciente possui algum foco metastático tumoral, pode apresentar sintomas ainda mais exacerbados, principalmente a dor óssea ou visceral. “A piora da dor e a conscientização do paciente que se encontra em situação de tratamento paliativo quanto à irreversibilidade do quadro oncológico, acabam levando a um comprometimento emocional muito grande desses pacientes, propiciando uma bola de neve e piora da dor”, explica. 

O Dr. Luciano, inclusive, reforça a ideia de AnaMi da necessidade de um time de profissionais para casos de metástase, já que esses pacientes precisam de cuidados integrais. “Para que se faça um atendimento adequado de Cuidados Paliativos deve-se ter uma Equipe Multidisciplinar e capacitada que vise uma busca pela qualidade de vida no curso de uma doença, controlando seus sintomas e prevenindo o sofrimento físico e emocional do paciente, e, na fase final de vida, permitindo uma morte digna com o mínimo de sofrimento possível”, diz.

Uma mensagem – e uma vida – de esperança

Começar uma rotina agradável de exercícios físicos, manter uma alimentação equilibrada e nutritiva, fazer a manutenção dos efeitos colaterais da medicação e, principalmente, investir nos cuidados emocionais e nas vivências possíveis durante o tratamento paliativo são algumas das maneiras de virar a chave de um diagnóstico com cara de fim imediato para uma vivência rica. 

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“Se você quer ser sincero com quem você é, se depare com esse muro [da morte], olhe para trás e se pergunte: o que eu fiz até aqui?”, reflete AnaMi. “Como eu estou contribuindo para essa humanidade? O que faz o meu coração vibrar de verdade? Eu sinto paz? Eu sinto medo? Como eu lido com isso? Como eu posso ser a melhor pessoa possível? Será que eu estou julgando o tempo inteiro os outros? É uma escolha, uma decisão diária, o caminho que você quer perseguir para sua saúde.”

É fácil os pacientes olharem para o câncer como uma condenação, mas o que a jornalista busca fazer diariamente é abrir a mente e o coração dessas pessoas para uma possibilidade de vida – não é uma desistência de viver, mas um resgate de experiências, diante das circunstâncias apresentadas. “A gente ressignifica dentro do que é possível, os pacientes aprendem a vibrar pelas pequenas conquistas”, continua.

Para AnaMi, conviver com o câncer a trouxe até esse ponto, em que coordenar a Casa Paliativa a colocou em contato com mais de 1700 pacientes graves em cuidados paliativos e descobrir uma força e um desejo de viver que não necessariamente é encontrado em pessoas consideradas saudáveis. 

“Eu vejo, numa comunidade completamente doente, as pessoas mais saudáveis que eu já vi na vida. Elas estão vivas, no verbo, de viver mesmo, e vendo sentido nisso. Eu acho que é a coisa mais sagrada que existe, você sair da anestesia, do cartesiano, da necessidade da validação o tempo inteiro. Elas não têm vergonha de falar da condição delas, assumiram essa postura do curador ferido, que pega a sua própria história e entende que ela pode ser fonte de pertencimento para outras. Não é só o ‘meu’ sofrimento, é que o sofrimento existe. Elas se partilham, partilham as dores e vivem, é muito bonito vê-los construir outro legado”, finaliza. 

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Negra Li: estrela da capa de outubro da Boa Forma
Negra Li: estrela da capa de outubro da Boa Forma (Patty Lima/BOA FORMA)

Esse especial faz parte da edição de outubro de 2021 de Boa Forma,
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